Sou muito fã do diretor estadunidense Quentin Tarantino. Assisti a quase todos os seus trabalhos. Seus filmes são conhecidos por terem diálogos bem construídos, por trazerem referências bastante inteligentes, inclusive, fazendo conexões entre suas obras e, sobretudo, por terem sangue, muito sangue. A violência em seus filmes é retratada enfaticamente, às vezes, de maneira quase caricata.
Seu último longa-metragem, Os Oito Odiados (2015), é bastante extenso, tendo quase três horas de duração. Situado em um período que sucede a Guerra da Secessão, o longa conta a história de oito pessoas que estão hospedadas em uma pousada afastada e isolada, procurando fugir de uma rigorosa nevasca. É nessa pousada que ocorre grande parte do filme, onde os personagens começam a descobrir informações uns dos outros e, ao final, tudo acaba em sangue. Essa última revelação não é necessariamente um spoiler porque todos os filmes de Tarantino acabam em muito sangue.
A história do filme traz algumas possibilidades de reflexão, inclusive históricas, pois está envolta em toda uma questão racial, que ainda hoje é observada por lá, nos EUA, mas que era muito mais marcante logo após a abolição da escravatura nas terras ianques. Mas entre tantas questões que merecem debates profundos, uma delas é a forte presença das armas no cotidiano e na própria cultura dos norte-americanos.
Por outro lado, aqui no Brasil, diante do cenário de grande violência, as pessoas costumam procurar fórmulas fáceis, soluções simplórias, achando que vão resolver o problema. Uma dessas soluções ilusórias é a ideia de que armando a população estaremos mais seguros. Essa era uma das promessas de campanha de Jair Bolsonaro e foi cumprida em um dos seus primeiros atos do mandato, com a assinatura do decreto que facilita a posse de armas no país.
Não podemos ser inocentes em pensar que não haja interesses econômicos por trás dessa decisão. A indústria armamentista só tem a ganhar com a flexibilização do acesso às armas pelos cidadãos brasileiros. Para se ter uma ideia, as ações da empresa brasileira Taurus (FJTA4) cresceu de maneira vertiginosa no ano de 2018, acompanhando o desempenho eleitoral de Bolsonaro e, apesar de ter apresentado uma surpreendente queda logo após as eleições, atualmente, encontra-se com valorização acima de 200% em comparação a um ano atrás.
Ainda sobre a relação entre a indústria bélica e a política, em 2014, as empresas de armas financiaram as campanhas de 21 parlamentares. A partir das eleições de 2018, não foram mais permitidas as doações de pessoas jurídicas para campanhas políticas, mas não sejamos tolos de achar que essas empresas deixaram de influenciar de alguma forma na campanha desses candidatos.
Com relação ao impacto prático das armas na sociedade, estudos do Mapa da Violência revelam que muitas vidas foram poupadas desde a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003, quando houve algumas restrições em relação ao porte e a posse de armas de fogo e munição no país. É que as armas na mão do cidadão podem dar uma falsa sensação de segurança individual, mas não contribuem para a segurança coletiva, esta que deve ser ofertada pelo estado.
Além do mais, é comum, infelizmente, que vejamos inúmeros casos de policiais que são mortos, inclusive, à paisana, quando estão de folga, simplesmente porque reagem a assaltos e são alvejados por bandidos. Levando-se em consideração que um policial é bem mais preparado para portar uma arma de fogo que um cidadão médio, é de se supor que aumentar o número de civis utilizando armas no dia a dia pode ser um verdadeiro tiro no pé, literalmente.
Algumas pessoas usam como exemplo justamente os EUA, que apresentam bem menos homicídios que o Brasil (de fato), para defenderem por aqui a facilitação ao porte de armas. Mas é preciso lembrar que a criminalidade de um país é influenciada por inúmeros fatores, dentre eles, inclusive, o nível de desigualdade, e nesse ranking estamos entre os dez países mais desiguais do mundo.
Assim sendo, é extremamente desonesto comparar os números de violência dos EUA com os do Brasil. Mas para fazermos uma análise mais justa, o certo seria comparar as taxas de homicídios de dois países igualmente desenvolvidos. Nesse caso, podemos comparar Estados Unidos e Japão. Vale ressaltar que esses dois países tratam o armamento da população de maneira totalmente oposta: enquanto nos EUA as armas são facilmente acessíveis pela população, no Japão há um controle bastante rígido. Por sua vez, a taxa de homicídios nos EUA é pelo menos cinco vezes maior que a do Japão.
Mas “quem matam não são as armas, são as pessoas”; e “quem quer matar alguém, pode fazê-lo até mesmo usando utensílios de cozinha”, costumam argumentar os que defendem a flexibilização ao acesso de pistolas e revólveres. Mas se o acesso às armas de fogo não fosse tão fácil nos EUA, é possível que, por exemplo, houvesse bem menos tiroteios em escolas norte-americanas. Até porque, convenhamos, uma pistola faz um estrago bem maior do que uma faca de mesa.
É preciso levar em consideração que, em um país dividido como o Brasil, é possível que tenhamos bem mais que oito odiados. E com uma maior flexibilidade para que os “cidadãos de bem” adquiram armas de fogo, os acidentes e crimes passionais podem aumentar consideravelmente, podendo se tornarem comuns as cenas à la Tarantino no nosso dia a dia. Em vez de se armarem, devemos lutar para que as pessoas se amem ou, ao menos, se respeitem. E, sinceramente, se tiver que escolher entre a política armamentista dos EUA e a do Japão, prefiro a do último sem sombra de dúvidas.
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43071854
https://oglobo.globo.com/economia/brasil-o-10-pais-mais-desigual-do-mundo-21094828
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/9/03/brasil/22.html
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,enxugando-gelo-imp-,1146086
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